O episódio recente das meninas negras que foram proibidas de reentrar num quiosque localizado na praia carioca do Leme momentos após terem comemorado o aniversário de uma delas no mesmo estabelecimento ilustra a força da contextualização da “raça”. Ao contrário do que afirmam os que insistem no óbvio de que as raças não existem biologicamente, esse episódio demonstra como, socialmente, as raças existem e o racismo contra os negros é real. O que sustenta isso é o contexto social: o espaço que as pessoas ocupam e como elas são classificadas dentro dele. Como já elaborei antes (“A Racialização do Espaço: O Caso dos Shoppings”, Afropress, 27/11/2007), os espaços funcionam de forma a admitir ou rejeitar certas pessoas de acordo com critérios pré-estabelecidos, como a raça, a classe, ou uma combinação das duas. Dessa forma, uma pessoa pertencente a um grupo considerado pobre pode ser vista como tal independente de sua cor e, ao mesmo tempo, ter uma certa cor pode afetar a percepção de classe daquela pessoa e proibi-la de freqüentar certos espaços. Por isso, é muito difícil sustentar a idéia de que o problema do Brasil é de classe e não raça; a partir do momento que uma pessoa tenha a cor negra e outros traços ditos negróides (como o cabelo crespo), ela é comumente vista como “pobre” e discriminada, não obstante a presença de provas contrárias, como a notável ascensão socioeconômica dos negros brasileiros na última década.
Foi exatamente isso que aconteceu no dia 16 de fevereiro deste ano. Segundo Felipe Barcellos, o pai das meninas, que relatou o episódio em seu blog (“Ontem, dia de aniversário de 5 anos de minha filha, mataram um pouco de nós”), uma funcionária do quiosque impediu que as duas meninas voltassem à mesa onde haviam acabado de cantar “Parabéns” após terem ido ao banheiro. Ele lembra que a mesa era composta de familiares e amigos que “consumiram regiamente e pagaram suas despesas com tranquilidade”. Presume-se, então, que, naquele contexto da mesa, os negros presentes foram considerados de classe média ou pelo menos “não-pobres”; a mesa no quiosque e o seu comportamento na mesma lhes davam uma identidade de classe e os privilégios associados a ela. Uma vez que as duas pequenas convivas se afastaram da mesa, elas perderam sua identidade privilegiada e receberam outra muito mais cruel: “crianças de rua”. Não é preciso ser cientista social para entender o baixo status que ocupante de rua tem no Brasil, já que aqui a rua é terra de ninguém. Crianças negras temporariamente desacompanhadas de adultos correm o constante risco de serem vistas como marginalizadas.
Àqueles que tentarem sugerir que isso poderia ter acontecido com qualquer um, a pergunta óbvia é: qual a probabilidade de uma criança branca nas mesmas condições passar por uma humilhação dessas ou de se sentir “culpada por não ter a aparência ‘certa’ para poder ir e vir”? E ainda: quantos outros casos semelhantes acontecem no dia-a-dia sem que tomemos conhecimento deles? Uma outra pergunta, mais abrangente, é: até quando nossa inteligência será insultada com a negação do racismo brasileiro? E quantas crianças negras terão de sentir na própria pele a confirmação do contrário?
É bom saber que o pai das meninas, jornalista que é, resolveu divulgar a ocorrência tanto em português quanto em inglês. Quanto mais o mundo ficar ciente de episódios como tal, mais o Brasil tenderá a adotar uma nova postura em relação aos seus filhos que têm a marca da África no corpo.
A leitura do seu texto (com o link para o blog) está sendo recomendada pelo Astrogildo Esteves, do CEAP. As minhas dívidas com ele só aumentam, desta vez, duplamente: pela qualidade do texto e pela oportunidade de reencontrá-la. Continue a escrever e a dividir conosco as suas opiniões. Um abraço! Giovanni Harvey
ReplyDeletePreciso e contundente seu texto Vânia, estes caso se juntam a outros que estão acontecendo no momento com nossas crianças pelo Brasil afora. Não é que eu esteja falando que estas discrimnações estejam acontecendo agora, os casos que estão acontecendo é que as pessoas estão perdendo o medo ou a "vewrgonha" de falar sobre o que se passa com elas e suas filhas e filhos.
ReplyDeleteGostaria de "reblogar" seu texto me meu blog. Segundo a linha do Astrogildo que me repassou o seu texto, pois do fato eu já havia tomado conhecimento.
Abraços
Oi, Giovanni! Há quanto tempo! Obrigada pelo comentário.
ReplyDeleteUm abraço,
Vânia
Marcos, obrigada pelo comentário. Sinta-se à vontade para reblogar o meu texto.
ReplyDeleteObrigada também ao Astrogildo, que eu ainda não conheço, mas que fez a gentileza de indicar meu texto a você e ao Giovanni.
Um abraço,
Vânia