Copyright Permissions

All posts on this blog are copyrighted by Vânia Penha-Lopes, Ph.D.

Wednesday, April 28, 2010

DA DESCARACTERIZAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NO BRASIL

Numa tarde de dezembro de 2008, o Jornal Hoje mostrou uma matéria sobre a nova reforma ortográfica da língua portuguesa. Tal reforma aproximaria o português do Brasil do português continental ao eliminar uma série de grafias que só nós brasileiros usamos, tais como o acento agudo no ditong ei (ex., idéia, protéico, epopéia) e no ditongo oi (ex., jóia), o acento grave no hiato oo (ex., vôo) e o trema (ex., freqüente, tranqüilo). Segundo o eminente gramático Evanildo Bechara, a reforma é necessária porque o português é “a única língua de peso cultural e político que tem duas ortografias oficiais”.

Ora, isso é uma inverdade lingüística. Basta um exemplo: qualquer dicionário inglês-inglês publicado nos EUA indica ortografia e pronúncia britânicas (assim como regionalismos americanos), de modo que a palavra “comportamento” é listada tanto como behavior (a ortografia em vigor nos EUA) quanto como behaviour (a ortografia britânica); essa última é seguida da nota “chiefly British”.

Sou terminantemente contra essa padronização forçada da nossa língua pelos seguintes motivos: 1) ela ignora as diversidades culturais que produziram ortografias variadas; 2) ela é incompleta; e 3) ela é economicamente contraproducente.

Portugal é o único país colonizador que aportou em todos os continentes e lá deixou marcas. O Brasil, sua maior colônia, ficou em grande parte por conta de jesuítas que disseminaram o português arcaido dos séculos XVI-XVII. Desde então, houve reformas no linguajar português que não nos alcançaram. Por exemplo, nós brasileiros empregamos o gerúndio para expressar uma ação contínua (ex., Estou cantando), enquanto que os portugueses contemporâneos preferem o infinitivo (ex., Estou a cantar). Além disso, a língua falada até hoje em Portugal demonstra a profunda influência dos 700 anos da ocupação moura da Península Ibérica, de modo que os portugueses pronunciam o ditongo “ei” como nós pronunciamos o ditongo “ai”, com o a soando grave. Então, “idéia” em Portugal soa como “idâia” aos ouvidos brasileiros (e o d é parecido com a pronúncia árabe, semelhante ao th em “there” em inglês). Deve ser por isso que eles não acentuam a palavra—o que faz sentido no contexto deles, mas não tem nada a ver com a gente. Os portugueses também devem pensar assim, pois muitos alegam que nós falamos “brasileiro”. De fato, em 1999, na primeira vez que fui a Portugal, não entendi quando a aeromoça da Tap me perguntou sobre minha preferência de jantar: “Pâix ou glinha?” É claro que ela tinha dito “peixe ou galinha”, mas entre o ditongo arabizado e a suavidade das vogais átonas, levou um segundo para eu entendê-la.

Um mês após ter assistido à matéria no Jornal Hoje, fui a uma conferência em Portugal. Insatisfeita com a reforma ortográfica, que eu considero absurda, prestei ainda maior atenção à grafia e à pronúncia das palavras do que de costume para uma amante das letras como eu. Já no aeroporto do Porto, vi “vôo” escrito da maneira que a reforma quer impor a nós, ou seja, sem o acento circunflexo. No decorrer da minha viagem, que me levou também a Braga, a Coimbra, a Lisboa e a Fátima, observei que vários objetos têm nomes diferentes em Portugal: “trem” é “comboio”, “ônibus” é “autobus”, “aspirador de pó” é “extintor de pó”, “farelo” é “miga”, “controle” é “controlo” e “pênalti” é “grande penalidade”. “Antônio”, nome bastante comum em Portugal devido à popularidade do santo nascido em Lisboa, escreve-se “António”. E “obsoleto” e “coeso”, que nós pronunciamos com o “e” grave, lá se pronuncia com o “e” agudo. Não é preciso ser nenhuma grande conhecedora de idiomas para se entender que a história e a cultura portuguesas deram à sua língua vocábulos diferentes dos nossos, esses oriundos da posterior mescla do português com as línguas africanas, francesa, holandesa e indígenas durante a nossa colonização. Pergunto: qual a grande vantagem de se ignorar a nossa grafia em prol de uma unificação se os nossos vocabulários e nossa maneira de pronunciá-los são deveras diferentes? Por outro lado, qual o critério para se mudarem algumas regras e não todas?

O outro problema da reforma ortográfica—e talvez o mais grave—é o ônus econômico que ela provoca. Num país com um percentual relativamente grande de analfabetos e de pobres, sera dispendioso reimprimir livros escolares que sigam as novas regras. Quanto desperdício de papel! E quanto tempo levará para as bibliotecas renovarem seus estoques? Nesse ínterim, o que acontecerá com os alunos que, sem posses para comprar livros, dependem das bibliotecas para estudarem?

Ainda durante a minha primeira viagem a Portugal, fui apresentada a um padre que alegava ser a língua portuguesa uma afronta ao latim, pois esse não tinha acentos. Retruquei que o português era filho do latim e, portanto, uma outra língua; o que achava o pároco do francês, então, cujas palavras são tão mais povoadas de acentos que as nossas (ex., déjà, dépôt)? Ele acabou concordando com a minha lógica.
A recente reforma ortográfica é sintomática da crise existencial pela qual o português do Brasil vem passando. Com o contínuo desaparecimento dos acentos (como se a reforma de 1971 não tivesse sido suficiente), nosso português vai ficando mais parecido com o espanhol e o inglês. Explico: atualmente, as pessoas já confundem várias palavras, pronunciando “liquidação”, “distinguir” e até “questão” como se tivessem trema. Sem o trema, as pronúncias se deturparão ainda mais; com o tempo, as pessoas falarão “tranqüilo” como se fosse “tranquilo”. Só que isso não é português, mas espanhol! Quanto menos acentos o português tiver, mais próximo ficará do inglês, uma língua desprovida de acentos e predominante no “mundo virtual” da internet. Brasileiros que usam computadores internacionais cada vez mais escrevem sem nossos acentos e alegam que fica “mais fácil” de se teclar. Pode até ser, mas desde quando “facilidade” é sinônimo de “qualidade”?

Em suma, um ano após a implantação da nova ortografia, continuo achando-a absolutamente desnecessária, quiçá ofensiva. E, para quem ainda não percebeu, aviso que, pelo menos aqui no meu blog, ela não terá vez.

2 comments:

  1. Legal ler teus textos "em língua brasileira"... uma curtição!

    ReplyDelete
  2. I am so glad you raised this issue, because I have mixed feelings about it. So I agree heartily with your critique of "people of color" for enhancing the "invisibility" of diversity in "whiteness". But might this phrase have some positive uses?

    First, it emphasizes the shared social, political, and personal expereinces of being marginalized by the same dominate group.

    Second, that shared experiences might give rise to mutual cooperation and thereby counter historically real and politically contrived divisions.

    Third, the phrase can serve as a positive alternative to "non-white" which makes whiteness is the touchstone of identity.

    ReplyDelete