DA DESCARACTERIZAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA NO BRASIL
Numa tarde de dezembro de 2008, o Jornal Hoje mostrou uma matéria sobre a nova reforma ortográfica da língua portuguesa. Tal reforma aproximaria o português do Brasil do português continental ao eliminar uma série de grafias que só nós brasileiros usamos, tais como o acento agudo no ditong ei (ex., idéia, protéico, epopéia) e no ditongo oi (ex., jóia), o acento grave no hiato oo (ex., vôo) e o trema (ex., freqüente, tranqüilo). Segundo o eminente gramático Evanildo Bechara, a reforma é necessária porque o português é “a única língua de peso cultural e político que tem duas ortografias oficiais”.
Numa tarde de dezembro de 2008, o Jornal Hoje mostrou uma matéria sobre a nova reforma ortográfica da língua portuguesa. Tal reforma aproximaria o português do Brasil do português continental ao eliminar uma série de grafias que só nós brasileiros usamos, tais como o acento agudo no ditong ei (ex., idéia, protéico, epopéia) e no ditongo oi (ex., jóia), o acento grave no hiato oo (ex., vôo) e o trema (ex., freqüente, tranqüilo). Segundo o eminente gramático Evanildo Bechara, a reforma é necessária porque o português é “a única língua de peso cultural e político que tem duas ortografias oficiais”.
Ora, isso é uma inverdade lingüística. Basta um exemplo: qualquer dicionário inglês-inglês publicado nos EUA indica ortografia e pronúncia britânicas (assim como regionalismos americanos), de modo que a palavra “comportamento” é listada tanto como behavior (a ortografia em vigor nos EUA) quanto como behaviour (a ortografia britânica); essa última é seguida da nota “chiefly British”.
Sou terminantemente contra essa padronização forçada da nossa língua pelos seguintes motivos: 1) ela ignora as diversidades culturais que produziram ortografias variadas; 2) ela é incompleta; e 3) ela é economicamente contraproducente.
Portugal é o único país colonizador que aportou em todos os continentes e lá deixou marcas. O Brasil, sua maior colônia, ficou em grande parte por conta de jesuítas que disseminaram o português arcaido dos séculos XVI-XVII. Desde então, houve reformas no linguajar português que não nos alcançaram. Por exemplo, nós brasileiros empregamos o gerúndio para expressar uma ação contínua (ex., Estou cantando), enquanto que os portugueses contemporâneos preferem o infinitivo (ex., Estou a cantar). Além disso, a língua falada até hoje em Portugal demonstra a profunda influência dos 700 anos da ocupação moura da Península Ibérica, de modo que os portugueses pronunciam o ditongo “ei” como nós pronunciamos o ditongo “ai”, com o a soando grave. Então, “idéia” em Portugal soa como “idâia” aos ouvidos brasileiros (e o d é parecido com a pronúncia árabe, semelhante ao th em “there” em inglês). Deve ser por isso que eles não acentuam a palavra—o que faz sentido no contexto deles, mas não tem nada a ver com a gente. Os portugueses também devem pensar assim, pois muitos alegam que nós falamos “brasileiro”. De fato, em 1999, na primeira vez que fui a Portugal, não entendi quando a aeromoça da Tap me perguntou sobre minha preferência de jantar: “Pâix ou glinha?” É claro que ela tinha dito “peixe ou galinha”, mas entre o ditongo arabizado e a suavidade das vogais átonas, levou um segundo para eu entendê-la.
Um mês após ter assistido à matéria no Jornal Hoje, fui a uma conferência em Portugal. Insatisfeita com a reforma ortográfica, que eu considero absurda, prestei ainda maior atenção à grafia e à pronúncia das palavras do que de costume para uma amante das letras como eu. Já no aeroporto do Porto, vi “vôo” escrito da maneira que a reforma quer impor a nós, ou seja, sem o acento circunflexo. No decorrer da minha viagem, que me levou também a Braga, a Coimbra, a Lisboa e a Fátima, observei que vários objetos têm nomes diferentes em Portugal: “trem” é “comboio”, “ônibus” é “autobus”, “aspirador de pó” é “extintor de pó”, “farelo” é “miga”, “controle” é “controlo” e “pênalti” é “grande penalidade”. “Antônio”, nome bastante comum em Portugal devido à popularidade do santo nascido em Lisboa, escreve-se “António”. E “obsoleto” e “coeso”, que nós pronunciamos com o “e” grave, lá se pronuncia com o “e” agudo. Não é preciso ser nenhuma grande conhecedora de idiomas para se entender que a história e a cultura portuguesas deram à sua língua vocábulos diferentes dos nossos, esses oriundos da posterior mescla do português com as línguas africanas, francesa, holandesa e indígenas durante a nossa colonização. Pergunto: qual a grande vantagem de se ignorar a nossa grafia em prol de uma unificação se os nossos vocabulários e nossa maneira de pronunciá-los são deveras diferentes? Por outro lado, qual o critério para se mudarem algumas regras e não todas?
O outro problema da reforma ortográfica—e talvez o mais grave—é o ônus econômico que ela provoca. Num país com um percentual relativamente grande de analfabetos e de pobres, sera dispendioso reimprimir livros escolares que sigam as novas regras. Quanto desperdício de papel! E quanto tempo levará para as bibliotecas renovarem seus estoques? Nesse ínterim, o que acontecerá com os alunos que, sem posses para comprar livros, dependem das bibliotecas para estudarem?
Ainda durante a minha primeira viagem a Portugal, fui apresentada a um padre que alegava ser a língua portuguesa uma afronta ao latim, pois esse não tinha acentos. Retruquei que o português era filho do latim e, portanto, uma outra língua; o que achava o pároco do francês, então, cujas palavras são tão mais povoadas de acentos que as nossas (ex., déjà, dépôt)? Ele acabou concordando com a minha lógica.
A recente reforma ortográfica é sintomática da crise existencial pela qual o português do Brasil vem passando. Com o contínuo desaparecimento dos acentos (como se a reforma de 1971 não tivesse sido suficiente), nosso português vai ficando mais parecido com o espanhol e o inglês. Explico: atualmente, as pessoas já confundem várias palavras, pronunciando “liquidação”, “distinguir” e até “questão” como se tivessem trema. Sem o trema, as pronúncias se deturparão ainda mais; com o tempo, as pessoas falarão “tranqüilo” como se fosse “tranquilo”. Só que isso não é português, mas espanhol! Quanto menos acentos o português tiver, mais próximo ficará do inglês, uma língua desprovida de acentos e predominante no “mundo virtual” da internet. Brasileiros que usam computadores internacionais cada vez mais escrevem sem nossos acentos e alegam que fica “mais fácil” de se teclar. Pode até ser, mas desde quando “facilidade” é sinônimo de “qualidade”?
A recente reforma ortográfica é sintomática da crise existencial pela qual o português do Brasil vem passando. Com o contínuo desaparecimento dos acentos (como se a reforma de 1971 não tivesse sido suficiente), nosso português vai ficando mais parecido com o espanhol e o inglês. Explico: atualmente, as pessoas já confundem várias palavras, pronunciando “liquidação”, “distinguir” e até “questão” como se tivessem trema. Sem o trema, as pronúncias se deturparão ainda mais; com o tempo, as pessoas falarão “tranqüilo” como se fosse “tranquilo”. Só que isso não é português, mas espanhol! Quanto menos acentos o português tiver, mais próximo ficará do inglês, uma língua desprovida de acentos e predominante no “mundo virtual” da internet. Brasileiros que usam computadores internacionais cada vez mais escrevem sem nossos acentos e alegam que fica “mais fácil” de se teclar. Pode até ser, mas desde quando “facilidade” é sinônimo de “qualidade”?
Em suma, um ano após a implantação da nova ortografia, continuo achando-a absolutamente desnecessária, quiçá ofensiva. E, para quem ainda não percebeu, aviso que, pelo menos aqui no meu blog, ela não terá vez.