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Wednesday, March 23, 2011

Na Terra de Obama, Também Não É Fácil Ser Negro

Em seu pronunciamento quando da abertura do ano letivo anteontem, José Vicente, o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares,  equivocou-se ao declarar que “nos EUA, os negros receberam, após a abolição, acres de terra e uma mula, enquanto que no Brasil foram jogados na rua”. Ele acrescentou: “Não é fácil ser negro neste país” (Redação, Afropress, 22/01/2011).

Na verdade, os "40 acres e uma mula" foram uma idéia nunca posta em prática após a emancipação dos escravos norte-americanos. Muito pelo contrário; os ex-escravos foram mantidos em regime de quase semi-escravidão: trabalhando em grupos de parentes que incluíam idosos e crianças bem pequenas, cumpriam uma longa jornada, mas quase sempre terminavam a safra devendo aos proprietários das fazendas por conta dos cálculos exploradores que esses faziam.

Os poucos negros que conseguiram cultivar sua própria terra ou montar um negócio eram constantemente admoestados, até linchados. A Ku Klux Klan (KKK) foi fundada no sul dos EUA em 1865 justamente com o objetivo terrorista de intimidar os negros que ousassem “sair dos seus lugares”, ou seja, que tentassem ser empreendedores num país onde eles continuavam a ter pouquíssimos direitos. Vale lembrar que os fundadores da KKK eram brancos pobres, seus competidores mais imediatos. Enquanto o regime de escravidão vigorou no sul, os brancos que não pertenciam à elite por não possuírem terras ou escravos tinham um módico status graças à sua condição racial. Com a emancipação, os ex-escravos entraram na economia de mercado e, portanto, passaram a competir com os brancos por empregos, salários, educação e propriedade privada. Os brancos pobres se valeram de seu status racial para rechaçarem os negros com impunidade. A elite branca, satisfeita com os benefícios que uma política de “dividir e conquistar” os setores menos favorecidos da população lhes proporcionava, ou apoiava a KKK ao não levar seus integrantes a julgamento ou simplesmente se omitia. Os linchamentos de negros tornaram-se corriqueiros espetáculos freqüentados por famílias brancas com direito a piqueniques e a fotos ao lado dos corpos mutilados e queimados.  As fotos eram impressas em cartões postais disputados como objetos de desejo.

Foi em resposta a esse clima de terrorismo que a carreira de Ida B. Wells (1862-1931) floresceu. A eloqüente jornalista negra ferrenhamente documentou os episódios de linchamento, inclusive um que vitimou seus próprios amigos, jovens comerciantes no Tennessee, em 1892. Por causa do vigor do seu editorial, ela foi intimada a sair da cidade de Memphis. Não obstante, ela continuou sua cruzada. Anos após a sua morte, os ativistas da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP) tentaram em vão convencer o Presidente Franklin Roosevelt a passar uma lei anti-linchamento, mas ele se negou.

Só o movimento pelos direitos civis, já na segunda metade do século XX, finalmente elevou os negros americanos a plenos cidadãos. Mesmo assim, até hoje os negros ganham menos que os brancos, são menos saudáveis, têm menos acesso à educação e continuam suscetíveis a “linchamentos”, como no caso do africano Amadou Diallo (1999) e do nova-iorquino Sean Bell (2006), ambos executados sumariamente pela polícia de Nova Iorque.
Portanto, há mais semelhanças entre o tratamento dos negros aqui e nos EUA do que às vezes se possa imaginar. Enquanto os ganhos dos negros americanos são inegáveis—a ponto de terem chegado à presidência do país—também não é fácil ser negro lá. 

Sunday, March 13, 2011

A MANGUEIRA SE ESQUECEU DO NELSON SARGENTO

A MANGUEIRA SE ESQUECEU DO NELSON SARGENTO


Li anteontem (11/03) que o grande Nelson Sargento assistiu ao desfile “aos prantos”, pela TV, porque a Mangueira teve o descaramento e o descaso de esquecer de entregar a fantasia de sua mulher. Segundo a matéria de jornal, devido à sua idade avançada Nelson “só sai de casa acompanhado”. Como a sua mulher não pôde desfilar, ele também não pôde.

Que fique bem claro que sou Mangueira. Por isso, a maldade que fizeram com o mestre sambista me magoou mais ainda.

Historicamente, a Mangueira tendeu fortemente ao tradicionalismo, evidenciado pelo respeito à Velha Guarda. E pelo que me lembre, a Mangueira resistiu durante anos às inovações do samba-show introduzidas pelo Joãosinho Trinta a partir da segunda metade dos anos 70. Após começar a desfilar no Rio fazendo apologia à ditadura militar (lembram do enredo sobre o PIS e o Pasep?!), a Beija-Flor inovou com excesso de luxo e um oba-oba generalizado que coincidia com a prática do Marcos Tamoyo de trazer figuras internacionais para o nosso Carnaval a fim de promovê-lo no exterior; foi numa dessas bocas livres que o Rod Stewart veio aqui e depois plagiou vergonhosamente o refrão de Taj Mahal  naquela ridícula música, Do You Think I’m Sexy? (as a matter of fact, no, I don’t). Com a crescente influência da TV Globo na transmissão e apuração dos desfiles, as escolas foram abrindo mais espaços para “destaques” e “musas” e “rainhas de bateria” que mal sambar sabem (este ano, uma delas, de tanto trotar, estabacou-se na avenida). Como nem as escolas nem a avenida são de Lycra, sobrou menos espaço para “as pastoras e os pastores ... da favela ... defenderem as suas cores”, como tão brilhantemente descreveu Paulo César Pinheiro e sua musa Clara Nunes interpretou com tanto amor. Não é mais bastante pros turistas assistirem ao desfile; eles também têm de sair na escola, não importa qual, muito menos que cantem o samba. E depois, as escolas, infladas de gente e alegorias, danam-se a correr pra não estourar o tempo. A Portela está atrasada? Ah, então vamos impedir a Velha Guarda de desfilar; eles são lentos demais.

Se antes a comissão de frente de toda escola era formada pelos bambas da Velha Guarda, muitas vezes fundadores da escola, hoje toda escola abre o desfile com um grupo coreografado por algum bailarino; quanto mais a escola parecer um show de Las Vegas logo de cara, mais pontos ela ganha. E, com isso, cada vez mais as escolas se afastam de suas tradições, a ponto de muita gente que alega ser “louca por samba” nunca ter ouvido falar em Carlos Cachaça ou Silas de Oliveira e nem sabe porque o Ismael Silva denominou a agremiação de “escola de samba”.

Esse é o outro motivo de eu estar tão chocada com o sofrimento do Nelson Sargento. Isso me lembrou do que aconteceu com o Ismael Silva já no fim da sua vida. Ismael—nada menos que o fundador da primeira escola de samba—recebeu um convite da Riotur para assistir ao desfile na Sapucaí. Se a minha memória não me falha, um PM impediu-o de entrar. Ismael, idoso, humilde, nada falou e foi pra casa. Para mim, isso marcou o começo do fim da associação do Carnaval e das escolas com a população que as criou, ou seja, negros, pobres e favelados. Já se vão muitos anos desde que aquele incidente revoltante aconteceu, mas a cada ano uma nova faceta se revela, como quando a Mangueira ignorou o centenário do seu fundador, o gênio Cartola, em prol de um enredo sobre o centenário do frevo, sem dúvida patrocinado pelo governo de Pernambuco. Nada contra Pernambuco nem frevo, um ritmo que eu adoro, mas sem o Cartola não teria havido a Mangueira.

Pois é, esqueceram a fantasia da mulher do Nelson Sargento. Como disse minha amiga Lélia, “Vê se iam se esquecer da fantasia do Roberto Carlos”. É só um exemplo, de outra escola; poderia também ter citado o frenesi em torno da Gisele Bünchen, a qual pelo menos admitiu que não sabe sambar.

Mas voltemos à Mangueira. O fato é que, ao impedir o Nelson Sargento de desfilar, ela se afastou um pouco mais da sua própria razão de ser.